Considerações sobre a decisão da 1ª turma do STF que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro réu, por Ives Gandra

Ives Gandra da Silva Martins

A decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro de aceitar a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) e torná-lo réu, entendendo que houve uma tentativa de golpe de Estado com base no que foi, fundamentalmente, encontrado no celular do coronel Mauro Cid e em sua delação premiada, merece algumas breves considerações.

Trata-se de uma mudança na jurisprudência do Supremo, pois, no caso da Lava Jato, apesar do prejuízo de bilhões causado ao Brasil por corruptores confessos, a Suprema Corte não utilizou a delação premiada como fundamento de suas decisões e até entendeu que ela não poderia servir para embasar prisões.

Como um velho advogado, com 68 anos de exercício profissional e 61 de magistério universitário e 90 anos de idade, confesso que ainda tenho muitas dificuldades para compreender a decisão, sem, contudo, fazer qualquer crítica aos Ministros. Aliás, por não criticá-los e, muitas vezes, elogiá-los, sou frequentemente censurado por meus leitores e seguidores das redes sociais.

Fato é que, primeiro, para haver uma tentativa de golpe, seria necessária uma ação concreta, que só poderia ser realizada por militares. No entanto, nenhum militar com comando de tropas saiu às ruas para essa tentativa.

Lecionei durante 33 anos para coronéis que seriam promovidos a generais e, em 2022, creio que aproximadamente 90% dos generais haviam assistido às minhas aulas de Direito Constitucional. Lembro-me perfeitamente de que, durante as aulas, nos momentos de debate, não havia ambiente para que algum deles cogitasse golpes de Estado, até porque minhas aulas eram sobre o respeito à Constituição, jamais sobre sua ruptura.

Reafirmo: para haver tentativa, é necessário que exista um ato de execução do crime. E, nesse caso, as Forças Armadas seriam as únicas que poderiam executar um eventual golpe. No entanto, não houve tentativa, pois sequer houve o início de uma ação.

Em segundo lugar, afirmar que o evento de 8 de janeiro foi um golpe é algo muito difícil de aceitar. Digo isso como historiador da Academia Paulista de História, com livros publicados na área.

Como acadêmico da Academia Paulista de História, nunca vi, ao estudar a história mundial, um golpe de Estado sem a participação das Forças Armadas. Destaco, ainda, que a minha segunda tese acadêmica foi sobre o impacto das despesas militares nos orçamentos públicos, analisando todas as conhecidas batalhas mundiais até o ano 1.200, quando se tornaram tão numerosas a ponto de não ser mais possível citá-las individualmente.

Insisto que o ocorrido em 8 de janeiro não foi um golpe de Estado também porque ninguém estava armado. Foi uma baderna, mas não foi um golpe de Estado. Uma das participantes estava com batom e alguns tinham estilingues. Ora, com batom e estilingues não se faz uma revolução.

O terceiro elemento que me impressiona é chamar de documento golpista um papel sem assinatura, onde constava uma declaração de estado de sítio.

Ora, o estado de sítio é uma figura constitucional que existe para garantir o Estado de Direito e não para rompê-lo. Para ser decretado pelo presidente, o estado de sítio deve ser autorizado por maioria absoluta do Congresso Nacional.

Trata-se, portanto, de um papel sem valor algum, já que o Congresso Nacional jamais autorizaria o estado de sítio. Sendo assim, não vale nada, não é um documento.

Quarto ponto que, como advogado, me parece importante: muitos dos advogados que eu conheço, alguns brilhantes e respeitadíssimos no Brasil, não tiveram acesso completo à delação premiada e a todos documentos.

Como é que eu vou defender o meu cliente sem conhecer todos os elementos que levaram à acusação? A Constituição, no inciso LV do artigo 5º prevê a garantia da “ampla defesa”. A palavra “ampla” é um adjetivo de uma força ôntica impressionante. Não é, portanto, qualquer defesa judicial e processual. Mesmo assim, a defesa queixou-se de ter tido acesso a apenas aquela parte que constava dos autos. Tratou-se, portanto, de uma defesa limitada e cerceada.

Com todo o imenso respeito que tenho aos Ministros, a matéria teria, a meu ver, que ser decidida pelo Plenário da Suprema Corte, dada a importância da discussão.

Uma vez mais, quero deixar muito claro que não faço juízo de valores sobre os Ministros, até porque tenho livros escritos com alguns deles e sempre os admirei como juristas. Embora, nas decisões judiciais, nossa convergência seja muito grande, nossa divergência ocorre quando entendo que eles se transformaram em poder político.

Por essa razão é que, hoje, são obrigados a andar acompanhados de seguranças. Algo que não ocorria quando eu saía com os Ministros Maurício Corrêa, Moreira Alves, Oscar Corrêa, Cordeiro Guerra, Sidney Sanches, enfim, todos aqueles que foram meus amigos de tempos imemoriais, como os de Aliomar Baleeiro, Hahnemann Guimarães ou José Néri da Silveira. Não era necessário uso de seguranças, porque era o STF apenas Poder Judiciário.

Significa dizer que os nossos atuais Ministros recebem um tratamento típico de políticos: quando estão na rua, quem os aprova, aplaude, enquanto quem não gosta, os ataca.

Como um modesto advogado de província e esforçado professor universitário de Direito Constitucional, creio que não foi essa a intenção dos Constituintes, até por conta do que presenciei ser discutido durante a elaboração da nossa Carta Magna. Nos 20 meses em que participei comentando a Constituição, fui ouvido em audiências públicas pelos Constituintes, mantendo contato permanente com Bernardo Cabral e visitando Ulisses Guimarães em sua casa, perto do Jóquei Clube, para discutirmos pontos da Constituição.

Naquele momento, o objetivo era, ao sairmos de um regime de exceção, onde havia um poder dominante, estabelecer três poderes harmônicos e independentes.

Retrato, pois, aquilo que vi na discussão e na formulação de uma Constituição ampla, prolixa, mas que tinha uma espinha dorsal fantástica, baseada na harmonia e independência dos Poderes, além da previsão dos direitos e garantias individuais, que são os dois maiores sustentáculos da Constituição de 1988.

Como um idoso de 90 anos, prisioneiro de São Paulo por conta da dificuldade de locomoção, mas com a cabeça ainda funcionando um pouco, embora não mais como antigamente, gostaria de trazer essas minhas reflexões para aqueles que me lêem e viram a decisão de ilustres Ministros do STF, a quem respeito, mas que têm, entretanto, neste nonagenário, advogado e professor universitário, uma interpretação que, infelizmente, em relação ao direito, é bem diferente daquilo que foi decidido.

Sem ter posição em relação a A, B ou C, mas apenas analisando o julgamento como um advogado com 68 anos de experiência e 61 anos como professor universitário, que passou 20 meses estudando para comentar com Celso Bastos, em 15 volumes e cerca de 10 mil páginas, a Constituição do Brasil, essa é a minha opinião.

Fico muito constrangido de divergir dos meus amigos da Suprema Corte, que tanto admiro. Mas, como cidadão, não poderia me calar.

* Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Feco mercio -SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

Fonte: Assessoria – Foto: Andreia Tarelow

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